sábado, 31 de dezembro de 2016

Entre a Cruz e a Espada na música clássica: o Streaming e o prazer da audição.

Vivemos tempos difíceis. Sou de uma época (anos 80, 90) em que para ouvir música a título de informação, usávamos o rádio. E, para ouvir música para o prazer e deleite estéticos (que é uma outra razão, bem diferente), em geral tínhamos que comprar um disco. No máximo, em caso de falta de dinheiro ou acesso, usávamos um recurso oficialmente aceito de pirataria: gravar em fita K7. Era o download analógico. Mas todos tínhamos, consciente ou inconscientemente, a unanimidade de que uma apreciação adequada só era possível com um LP original. Pelo menos, no quesito música clássica.
Bem, o mundo mudou, tornou-se digital, a indústria fonográfica foi ao colapso e teve que se reinventar. Só que ela se reinventou nivelando seus padrões para uma maioria consumidora, que, no caso desta humanidade, é a de música pop (com todos os seus gêneros possíveis, do rock ao sertanejo). E, no desespero de fazer alguma coisa, acabaram optando, como principal acesso à música, por uma rádio onipresente, o streaming via internet. Spotify e coisas do gênero. Como única opção alternativa, a Amazon e o iTunes disponibilizam também assinaturas e/ou possibilidade de download mediante módicas quantias, para enfim baixar um arquivo digitalmente. Melhorou, mas para quem veio da minha geração, isso não faz sentido, porque seria pagar pela cópia em fita K7, já que o arquivo vem sem encarte e comprimido em MP3 ou M4A lossy.
Não, não! rádio na internet não é uma opção para a contemplação de uma obra clássica; e, para ouvidos exigentes, MP3 passa apenas como última alternativa, e ainda paliativa.
Para piorar: não existem mais lojas de discos, apenas via internet, e, especificamente no Brasil, tem, por algum motivo alheio ao meu entendimento, um setor destinado aos clássicos pífio, praticamente inexistente. A ignorância é tamanha que os administradores destas lojas, em qualquer esfera, classificam André Rieu como música clássica. O mercado livre oferece discos eventuais, mas a preços exorbitantes ou um repertório escasso de sebos.
E a Amazon? bem, 3 discos que tentei comprar por lá nunca chegaram. Os correios não sabem o que aconteceu, e dizem que a culpa é minha porque são encomendas sem registro. Fora o preço do frete, que chega a ser 10 vezes o preço do disco. Quando o dólar está valorizado, essa não é uma opção.
Mas então, o que nos resta, se a própria indústria considera música um mero entretenimento e nos priva de uma admiração mais profunda? Como artista, sei que muitos dependem de vendas para sobreviver, principalmente em nossos dias. Por isso cheguei a tentar, por certo período de tempo, fazer contato com gravadoras detentoras de direitos sobre fonogramas digitais para viabilizar comercializá-los legalmente, por download. Seria desencalhar o enorme acervo de gravações do século XX, um legado inestimável, e ainda conseguir algum lucro, pois são gravações hoje a fundo perdido. Nada. Ninguém respondeu, não deram a mínima atenção.
Há uma alternativa, que são os sites das próprias gravadoras ou terceirizadas (como a Presto Classical, que fez algum acordo de monopólio para distribuir as gravações de catálogo), que disponibilizam seus acervos em MP3 ou FLAC, via internet. É bom, e seria a melhor opção, mas como o preço é em dólar, a comparação com a mera possibilidade de baixar gratuitamente desestimula qualquer iniciativa: Sem contar a flutuação da moeda, é obrigatório o uso de cartão de crédito internacional (que já limita o público), e a maioria dos títulos não vem sequer com um encarte. Fora que alguns títulos não estão disponíveis (sei lá por quê) em certas regiões. Fui tentar comprar um simples Beethoven por Klemperer e não tinha a disponibilidade de download para minha região (Brasil).
Depois de tentar todas estas alternativas, e concluir que ouvir um bom disco clássico hoje é uma odisséia, não tenho outra alternativa senão dizer: graças à uma política empresarial limitada (para dizer o mínimo), os ouvintes de música clássica só tem, pelo menos no Brasil, a pirataria como meio de acesso digno e eficiente. Isso não é uma opinião, é uma constatação.
Gostaria que esse texto fosse levado em conta não como um protesto ou uma provocação, mas como uma análise, uma reflexão. Num mundo ávido por poder, concorrência desenfreada e lucros a qualquer custo, desconsiderando até a vida humana com algum valor, a contemplação de uma obra de arte musical fica relegada a exceções comerciais que não se justificam economicamente. Aliás, poucas pessoas hoje reconhecem o valor psíquico deste tipo de contemplação, e o resultado é que a música clássica é tratada com a mesma superficialidade que qualquer outro gênero, quando ela é justamente o gênero que permite uma apreciação artística profunda. Não é um gênero melhor, é uma forma de expressão específica, e precisa de meios específicos, que não se contentam com os meios hoje disponibilizados oficialmente. Ouvir música clássica não é um hobby, é uma necessidade do espírito.
Deixo, portanto, minha reflexão: seremos obrigados a cometer crimes de direito autoral para poder vivenciar minimamente uma experiência estética. É esse o mundo que queremos?
Abraços

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