quarta-feira, 22 de maio de 2013

O caso Wagner

O conhecido episódio de amor e ódio entre Nietzsche e Wagner não passou de um conflito de ideais. O filósofo, durante certo tempo, acreditou ver na figura do compositor a personificação artística de seus rebuscados conceitos filosóficos. Wagner devia se sentir lisonjeado com isso de alguma forma, mas parecia que suas convicções filosóficas não se encerravam no ufanismo niilista e pessimista que traziam suas raízes schoppenhauerianas que Nietzsche admirava: começou a se mostrar comprometido espiritualmente, numa busca redentória pelo ideal cristão, o que deixou o filósofo desnorteado. Nietzsche se sentiu traído, e começou a atacá-lo com a mesma firmeza que antes usava para endeusá-lo. Como se vê, era uma relação de amizade muito honesta, pois uma vez tendo percebido que tinham objetivos diversos, separaram-se.

Este caso poderia ser o mais controverso da biografia de Wagner, mas hoje, dia 22 de maio, ao completar 200 anos de seu nascimento, a figura de Richard Wagner (1813-1883) é novamente posta em juízo por conta de um crime que ele não cometeu, mas que foi acusado, postumamente, de fazer apologia, apesar do anacronismo.

De todos os estragos que o nazismo provocou, é preciso acrescentar mais este: o de colocar Wagner no mesmo caldeirão de intolerância misógena que o Terceiro Reich apregoou. Que pior destino para a memória do artista que ser associado à figura de um fascínora, cuja único delito é ter sido admirado pelo inconveniente?

Certa vez, meu professor de Cultura e Civilização dos países de Língua alemã, no curso de Letras da USP, o sr. George Sperber, me disse que Hitler só admirava Wagner pela questão ideológica; como gosto musical, o ditador queria mesmo é ouvir uma boa opereta... Não sei o quanto isso é verdade, mas achei uma revelação bombástica.

De qualquer forma, a figura de Wagner é normalmente disassociada socialmente de sua figura como artista, pois que sua biografia está repleta de ações tidas como autoritárias, egocêntricas e prepotentes. A hipocrisia de nossa sociedade é bastante visível nestas horas, em que é bem fácil julgar de longe para não nos comprometermos com os mesmos atos. Mas o que me salta aos olhos é que, mesmo sendo constantemente condenado pela inquisição da falsa moralidade, sua música não sai de moda, e sua arte permanece, teimosamente, no repertório de toda orquestra. Pergunto: seria subordinar a tal "ética" aclamada ao anseio do artista, maquiavelicamente, por parte do público? ou seria um recalque psicológico de querer ver o circo pegar fogo? O caso Wagner, me parece, é mais um problema psicológico de massa do que uma questão de julgamento moral.

Ah, mas tem a questão dos judeus! Como fica seu antissemitismo? Meu colega Milton Ribeiro escreveu um excelente artigo relembrando a discussão: http://www.sul21.com.br/jornal/2013/05/os-200-anos-do-genial-e-ainda-polemico-richard-wagner/

Em nossa época, tendo passado pelo horror do holocausto, é imprudente tecer qualquer comentário sobre o povo oprimido, mas em seu tempo, os judeus alemães em grande parcela não eram oprimidos e muito menos passavam necessidades: eram abastados e ocupavam posições importantes na sociedade, na política, nas finanças e na cultura. Neste contexto, é legítimo que Wagner tenha se pronunciado contra o monopólio judeu na cultura, em que provavelmente sofria algum tipo de concorrência desleal por conta do protecionismo aos artistas semitas. Pelo infortúnio do destino, as opiniões de Wagner eram suficientemente sinceras para permanecerem alheias, e encaixá-las em outra época, em outro contexto, parecia muito convidativo. Afinal, distorcendo o discurso wagneriano, a sociedade alemã passou a contar com o crivo de antecedentes históricos e culturais dos mais eloquentes.

Acrescenta-se ainda: os sobreviventes do holocausto tiveram que conviver com o trauma da lembrança, pois foram obrigados, num contexto opressivo e desumano, a ouvir nos alto-falantes dos campos de concentração toda a discografia wagneriana disponível.

Hoje, se quisermos ser razoáveis, basta olhar para o passado e para nós mesmos: oportunistas todos somos; enquanto estamos numa situação favorável, vai tudo bem. Mas aperte o calo, e veja a reação das pessoas. Wagner não era nada além de um idealista, e conquistou tudo da mesma forma que qualquer inteligência maior conquistaria: um gênio da diplomacia e da política, além dos dotes musicais evidentes.

Condená-lo por prepotência é meramente esquecer as tendencias egoístas da própria natureza humana, e julgá-lo como precursor do nazismo é um erro histórico grave, anacrônico e desleal.

Wagner, como personalidade, tem sido tratado injustamente, mas, pelo menos, salva-se o que fez de melhor: sua música.

Abraços

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Inspire-nos, Sir Colin Davis!

Nos deixou no último dia 14 de abril um dos representantes da derradeira geração de ouro da regência, Sir Colin Davis, aos 85 anos.

Minha relação com ele é bastante antiga, fui apresentado ainda na era do LP, quando, durante o auge da adolescencia, fiz do Le sacre du printemps meu hino da revolta. Música bárbara, pesada, selvagem e irresistível, nunca conheci melhor versão do que a que Davis gravou com o Concertgebouw de Amsterdam em 1977, tanto em regência quanto em sonoridade. 

Depois, Berlioz: Davis foi o primeiro a gravar sua obra completa, e fez conhecer a todos da minha geração as sutilezas do pai da orquestração como nenhum outro, abrindo as portas para obras pouco conhecidas. Até hoje não me canso de ouvir sua versão de Harold en Italie com Nobuko Imai. Um marco na discografia de Berlioz.


Meu primeiro artigo publicado num jornal foi sobre sua breve passagem pelo Brasil, com a Staatskapelle Dresden em julho de 1995, em que fui honrado com a missão de escrever para a Folha de S.Paulo uma apresentação, com o resumo de sua vida. Nesta época trabalhava no Banco de Dados, mas sempre fazia visitas à redação da Ilustrada, e, sendo cara-de-pau, acabei sobrando para escrever (uhu!!)

E nesta pesquisa é que fui descobrir: foi malogrado entre seus colegas do Royal College of Music porque era o único que frequentava as classes de regência sem saber tocar piano. Seu instrumento era a clarineta. Como nada é por acaso, seu talento nato foi reconhecido numa peripécia que muitos considerariam sorte: apesar de desdenhado como maestro, teve que substituir às pressas Otto Klemperer numa apresentação do Don Giovanni, e este, meio sem jeito, foi seu triunfante début.

Aclamado mas pouco festejado, tinha como maior virtude a naturalidade da interpretação. Não se prendia a leituras dogmáticas, deixava sua batuta livre e com isso conseguia percorrer com destaque compositores tão diversos como Mozart e Stravinsky. 

Detalhes à parte, digo que, para mim, seu estilo claro, polido e honesto de reger vai deixar saudades. 

Abraços