sábado, 30 de junho de 2012

Mas afinal... o que é Música Clássica?

Essa, durante muito tempo e ainda um pouco hoje, foi uma das minhas perguntas fundamentais. Começou quando eu contava 10 ou 11 anos, numa ocasião específica em que ouvi pela primeira vez o irresistível Concerto Imperador de Beethoven. Nobre, eloqüente e solene, este concerto me arrebatou com tamanha força que desde então (e já se passaram 30 anos!) não tenho conseguido ouvir nada além da chamada Música Clássica.

Como um estreante desbravador afoito, empolgado e entusiasmado pela magia contaminante da música, fiquei entorpecido com a descoberta de um mundo novo. Comecei a procurar em todos os lugares: nas saudosas (e hoje extintas) lojas de discos, nas livrarias e bibliotecas e nas coleções de discos dos parentes e amigos; tudo da música clássica me interessava, e eu buscava cada vez ouvir mais.

A lembrança destes episódios me veio nostalgicamente à tona quando vi, há algumas semanas atrás, uma notícia na mídia eletrônica que dizia: "André Rieu faz concerto em São Paulo". Até aí, soou para mim como se anunciassem um novo sucesso da música sertaneja chamada "universitária": indiferente. Porém, a notícia me chamou imediatamente a atenção, por conta do seu chapéu (a chamada acima da manchete): "Música Clássica".
Eis então que me vejo de volta aos 12 anos, indignado e revoltado quando, entrando numa loja de discos, ávido por descobrir novas gravações ou novos compositores, encontro a estante de Música Clássica abarrotada de grandes sucessos de Richard Clayderman, Mantovani, Paul Mauriat e Ray Conniff. Frustração! Não tinha e nem tenho nada contra nenhum deles, mas estão tão longes da música clássica quanto Sidney Sheldon está de James Joyce. Propósitos, intenções e públicos totalmente diferentes!
Eles se enquadram no que hoje a indústria da gravação musical convencionou chamar de "crossover", ou cruzamento de estilos. Eram uma espécie de André Rieu dos anos 70 e 80, e fizeram-se famosos, entre outros motivos, por popularizar temas clássicos consagrados, mas retirando totalmente o aspecto transcendente destes, misturando-os com música ambiente de bailes de formatura.
Se na adolescência isso era motivo de revolta, hoje é motivo de reflexão: se há uma confusão quanto à definição de música clássica, é preciso esclarecer as diferenças, e para isso, fui procurar na literatura crítica. Eis o que encontro: nada.

É um aspecto muito curioso: todos os críticos eruditos sabem a diferença, mas nenhum deles a explica satisfatoriamente. Sabem que estão diante de uma obra clássica, mas não conseguem distingui-las com propriedade dos demais gêneros musicais.
Acredito que isso seja, pelo menos em algum grau, certo receio de parecer arrogante ao tentar definir a música clássica pela questão técnica e chegar à conclusão que ela é melhor que outros gêneros, desdenhando de quem aprecia outros estilos como "plebe", e elevando automaticamente a uma categoria intelectual distinta, "nobre", os apreciadores da tal música clássica.

Eu mesmo cheguei a enfrentar certo preconceito, porque as pessoas tendem a acreditar que o gosto pela música "erudita" tem uma inexplicável mas verossímil ligação direta com inteligência ou nível social. Acho isso tão descabido (afinal, sendo escolha legítima, temos o direito de gostar do que quisermos) que desde então, procurei uma definição satisfatória que pudesse diferenciar aquilo que eu gostava dos resto.
Tarefa das mais hercúleas!

A começar pela nomenclatura: histórica e tecnicamente "música clássica" é um estilo específico sucessor do barroco, que vai, didaticamente, de 1750 a 1827 (ano da morte de Beethoven, representando a transição para o estilo romântico). Trocando em miúdos, isso significa que apenas alguns compositores, como Stamitz, Haydn, Mozart, Schubert e o próprio Beethoven, podem ser chamados categoricamente de "clássicos". Os demais pertenceriam a outros períodos. Mas a única alternativa em língua portuguesa para este termo é uma que eu mesmo costumava usar, mas que prefiro hoje evitar justamente por margear a conotação condenada acima: Música Erudita. Este é o termo que teria a intenção de reunir toda a gama da chamada música clássica em todos os seus estilos; apesar de mais correto, também parece mais arrogante.

Hoje prefiro usar o termo Música Clássica no mesmo sentido em que se fala em literatura clássica ou filme clássico (fala-se até mesmo em Clássicos do Rock, ou clássico no futebol). São as grandes referências da arte, as obras mais importantes e densas desta nossa humanidade, que traduzem com maior profundidade as vicissitudes da nossa psique e geram emoções mais universais.

Seria essa a única qualidade da chamada música clássica, que bastaria para definí-la? Ser universal, com certeza não, pois apesar de haver muitos apreciadores de Mozart, com certeza há bem poucos de Zemlinsky, e ambos são "Música Clássica".

Critério técnico? Também não poderia ser parâmetro, pois o Jazz é um dos gêneros tecnicamente mais sofisticados da música. Ademais, resoluções harmônicas comuns na música clássica são encontradas na mesma proporções na música popular também. Todos os demais critérios caem por terra por análise semelhante: não é música para intelectuais nem para pessoas abastadas, pode ser apreciada por qualquer um, mas não em qualquer momento.

Quando pensei esse aspecto, o momento, uma luz me veio como uma (provisória) conclusão. Música clássica é aquela que estabelece um discurso que propõe a reflexão de um aspecto sensível. Para poder realizar essa proposição, a diferença está justamente na maneira como desenvolve o discurso musical. Por este motivo,  por mais simples (Satie, Orff, Glass) ou mais complexa que seja (Bruckner, Webern, Messiaen), é música que exige atenção plena do ouvinte para compreender sua mensagem. Não lhe cabe ser ouvida em shows nem em carros tunados (a não ser que seja Tchaikovsky), pois sua intenção é, como a grande literatura ou o grande cinema, transformar o eu do indivíduo através de uma experiência de catarse, transcendente. E este aspecto transcendente, que eleva a música clássica genericamente ao estado de "arte", é justamente o seu diferencial. É uma música que se propõe naturalmente a ser um espelho do bom, do belo e do grandioso, mesmo tendo incontáveis exemplos de músicas nesta categoria motivadas por eventos cotidianos mais ligados à diversão que à reflexão. Mas é exatamente por isso que temos a música de entretenimento e a música clássica: mesmo músicas populares podem, dependendo do grau de beleza arquetípica atingida, se tornar "clássicos". A diferença é que a música clássica se propõe naturalmente a isso.

Tal fato também desmistifica um erro muito comum: a chamada música clássica não era a música popular de antigamente. Sempre coexistiram ambas, popular e erudita, até porque é notório que muitos compositores (Schubert, Haydn, mesmo Mozart e Beethoven em menor medida), se utilizaram de música popular e folclórica como fonte de inspiração. Bach era criticado por tocar música difícil nos serviços sacros. A diferença também é o ponto de vista. "Antigamente" o valor dado à experiência emocional de estar diante de uma obra de arte era outro, e tal música era cultivada num grau muito maior, até porque, como não existiam sistema de reprodução sonora, quem quisesse ouvir música tinha que aprender a tocar (ou frequentar a casa de quem soubesse). Uma outra relação.

Claro, não é ainda uma definição, porque não sei se é um critério universal (serve a todos os casos), nem se é tão simples e objetiva como deveria, e também (por fim) a definição ainda contém o definido. Mas posso considerar, pelo menos, um "conceito". Música clássica é aquela que tem o objetivo final de traduzir um sentimento estético elevado, ou, mais simplesmente, é a música que tem a pretensão de ser arte em si mesma.

Não sei se isso pode ser considerado um conceito satisfatório, mas de uma coisa eu tenho certeza: André Rieu não é música clássica.
Abraços