sábado, 26 de maio de 2012

Dicotomias

Lá pelos idos de 1993, publiquei na extinta revista Qualis, um ensaio intitulado "Profetas da Modernidade", em que comparava a obra de Mahler com a de Richard Strauss. Ambos são rebentos de uma síntese artística que culminou na música wagneriana, mas que tomaram posições completamente díspares no que diz respeito à concepção estética. Sempre fui atraído pela música sinfônica pós-romântica, e, ademais, Mahler é meu compositor favorito, mas o que realmente me levou a escrever aquele ensaio foi um fascínio pelo aspecto da dualidade de forças estéticas que ambos promoviam, em tempo e espaço sincronizados. Amigos, contemporâneos e (quase) conterrâneos, compartilhavam o raro dom de terem alcançado reconhecimento tanto como regentes como compositores. Norman Lebrecht já citava: "Compositores que regem são problemáticos, mas regentes que compõe são uma franca ameaça. Mahler e Richard Strauss são contundentes exceções à regra", apesar do tempo de Mahler ter demorado um pouco mais a chegar. Não obstante, tinham personalidades muito distintas.

Na arte, e em especial na música, sempre encontramos aspectos opostos coexistindo, como que regulando energias psíquicas para manter um certo equilíbrio dinâmico dos humores inconscientes do homem. Estes aspectos, que desde Nietzsche são associados aos caráteres dos deuses gregos e, por essa razão, conhecidos como Apolíneo e Dionisíaco, expressam basicamente as oposições entre razão e emoção, mas que na música adquirem nuances bem mais sutis. Exemplo clássico dessa dualidade é, entre outros, o de Chopin e Liszt. Mestres absolutos do piano, educada e intimamente faziam competir seus egos para superarem-se um ao outro no domínio técnico do instrumento. Mas como compositores, entretanto, eram totalmente independentes um do outro; enquanto Liszt é épico e verborrágico, Chopin é sutil e poético. Este, mestre da pequena forma, veio do interior da Polônia, escreveu pouca música de câmara e sua únicas obras orquestrais são seus dois concertos para piano. Teve poucos relacionamentos (o mais notório com a escritora George Sand) e morreu bastante jovem, de tuberculose. Aquele, homem de vasta cultura literária e romântica, cidadão do mundo, encontrava refúgio emocional como amante de damas da nobreza européia. Expandiu as formas para a grande orquestra, criou o poema sinfônico e influenciou os dramas musicais wagnerianos. Liszt, o dionisíaco, Chopin, o apolíneo.

Quando escrevi o ensaio, na verdade não me atentei para este detalhe em especial, e comparei a obra de Mahler e Strauss a partir de um aspecto muito mais ligado à forma que ao conteúdo. Tomei como ponto de partida a figura heróica que cada um imprime em sua obra, sendo a de Mahler um herói intimista, contemplativo e introvertido, e em Strauss um herói extrovertido, alienado e espontâneo. O fato de Mahler ter abraçado a forma sinfônica e do lied como meio de expressão, ao passo que Strauss (apesar de ter se dedicado a quase todos os gêneros), abraçou prioritariamente o poema sinfônico e a ópera, me pareceram, àquela ocasião, os principais aspectos norteadores das concepções estéticas de cada um.

Mas hoje, revendo tais ideias, me deparei com outros componentes interessantes, que revelam, na verdade, que o fato de cada um ter desenvolvido determinadas formas mais do que outras é consequencia, e não causa, de uma obra. Observei que, por exemplo, certos maestros acabam se especializando em um ou outro:    
Karajan gravou apenas 3 sinfonias de Mahler (5a.,6a. e 9a.), ao passo que gravou praticamente toda a obra orquestral de Strauss, várias vezes. Bernstein, que, não por mera coincidência, é uma espécie de antítese de Karajan, é (obviamente) o exato oposto: gravou todas as sinfonias de Mahler também várias vezes, ao passo que custamos a achar alguma gravação sua de Strauss. Celibidache e Böhm eram Strauss, enquanto Walter e Tennstedt, Mahler. É algo quase como Nikon e Canon. E mesmo os versáteis maestros que partilham dos dois, sentimos visivelmente uma interpretação mais espontânea e natural em um ou outro.

Justamente este aspecto de diferenças no temperamento de cada um saltou-me quando (re)li o diário de Alma Schindler, ou Alma Mahler-Werfel, como a maioria a conhece. Alma contava sobre o relacionamento conturbado entre Strauss e sua esposa, Pauline, e de como ele lhe era submisso. Strauss desculpava-se pela atitudes da mulher dizendo: "Minha esposa às vezes é muito grosseira... mas, sabe, eu preciso disso." Isso foi sublinhado por Alma, e, a partir desta constatação, desenvolveu uma ideia muito interessante sobre a personalidade, tanto artística quanto pessoal de Strauss: "Onde quer que procure, o aspecto sexual está sempre presente, assim como a obra de Mahler é marcada pela visão celibato."

Isso me pareceu muito lógico e absolutamente coerente: a visão de Mahler é a de um profundo contemplador, de alguém consciente de que está empreendendo uma busca espiritual, ao passo que a visão de Strauss é a de um niilista, cético e convencido de que, a exemplo de Nietzsche, a arte é a redentora do homem. Mahler usa a arte como expressão de uma necessidade íntima do espírito; Strauss, de uma necessidade do ego. Tanto que, no ensaio, comparo, ainda que de maneira superficial, o retrato musical que ambos esboçam para o mesmo assunto: o Zarathustra de Nietzsche. A visão de Mahler é poética, procura o que está além da natureza, o Criador. Strauss é literal, e busca expressar exatamente a ideia nietzscheana: temos apenas a natureza à nossa frente. Neste contexto, forma-se a dualidade entre o dionisíaco Strauss e o Apolíneo Mahler, mas que, como se trata de música, tende a se sutilizar.

Talvez pelo fato de que Strauss tenha vivido muito mais que Mahler, suas 4 últimas canções já são um reflexo de alguém que, afinal, começou a contemplar.
Abraços.