domingo, 6 de maio de 2018

Para ouvir música com alguma qualidade hoje em dia: FLAC vs. MP3


Caro Leitor:

Este post não é uma tentativa de traçar um perfil desolador e inconformado do atual panorama da produção musical no mundo. Sim, a música está passando por uma de suas fases mais sombrias em termos de qualidade de criação, mas não há muito o que reclamar, pois é assim que funciona o potencial psíquico do mundo: através de ciclos. O nosso, agora, é o fundo do poço.

Mas, como mencionei, não se trata desta qualidade que quero abordar, e sim uma outra, concomitante, e que se justifica pelo fato de que, uma das saídas para a escassez de boa música feita hoje, é justamente revisitar o passado, que, dependendo do caso, nem lhe cabe este adjetivo: são obras atemporais. Grande parte da produção da chamada música clássica cabe neste invólucro.
E exatamente neste quesito se impõe nos dias atuais o desafio que outrora era apenas uma questão de espaço: como ouvir grandes obras musicais e apreciá-las devidamente num dispositivo móvel que comprime o áudio até ficar pior que uma fita k-7?

Sou de um tempo em que se comprava LPs, os saudosos vinis, que, se tinham o inconveniente de riscar e apresentar chiados, tinham por outro lado uma qualidade de resposta de frequência extraordinária. Claro, isso não era objeto de questionamento uma vez que era a única mídia disponível, e portanto não havia a possibilidade de comparação. Foi aí que resolvi comprar minha primeira fita k-7, na tentativa de ouvir música clássica sem os chiados do disco. Realmente, a fita eliminava este problema, mas criava outro: a sensação de que se ouvia a música com um constante abafador de piano. Claro, a resposta de uma fita em frequencia, na velocidade em que era gravada, não podia competir com um LP bem gravado.

Adendo: todas estas comparações só eram possíveis porque na época não existiam praticamente aparelhos de som portáteis, a não ser radinhos de pilha, vitrolas infantis e toca-fitas bastante toscos, que nem entravam no mérito da discussão. Os aparelhos de som eram modulares ou, no máximo, aqueles famosos "3 em 1", que juntavam o rádio receiver, toca-discos e toca-fitas em um único aparelho. Os melhores equipamentos, entretanto, tinham que ser montados separadamente, inclusive caixas de som, e era uma preocupação vívida escolher alguma que tivesse uma boa qualidade de resposta sonora. E, mesmo os 3 em 1 eram muito melhores que todos os portáteis que vieram em seguida. Um jocoso anúncio publicitário da época (talvez final de 70) mostra um pouco a parafernália que era montar um aparelho de som:

Reparem nas caixas de som: hoje seriam consideradas profissionais,
dada a qualidade da construção e da resposta sonora.

Mas tudo isso tinha um propósito: o prazer de ouvir boa música num bom aparelho. Aliás, quanto melhor o aparelho, melhor o prazer. Era uma época que as pessoas pareciam realmente apreciar a música por suas qualidades intrínsecas, pois só isso justificaria a exigência de tal investimento em nível caseiro.

E hoje? bem, este tipo de aparelho ficou relegado à sonorização profissional ou a um público seleto, dado o alto investimento dos equipamentos, por vezes proibitivo, que faria um desavisado achar que não passa de algum excêntrico tentando ostentar luxo para as visitas - o que até pode ser verdade em alguns casos, mas que, de qualquer forma, pelo menos denuncia uma exigência por reprodução sonora de qualidade. Para o restante dos mortais, que apenas querem dizer à indústria eletrônica "mais qualidade, por favor!", nos empurram dispositivos móveis e fontes canhestras como o Spotify. Os vendedores das casas comerciais não-especializadas não conhecem os equipamentos, não tem nenhum tipo de treinamento sobre as diferenças entre os modelos e as codificações digitais disponíveis, limitando-se a repetir o que pode ser lido na embalagem. É o reino dos aparelhos portáteis, compatível com a profundidade do conteúdo da música ouvida hoje. Mas este também não chega a ser exatamente o problema, pois a portabilidade pode ser útil em muitos casos, e sim a tal qualidade - e é aí que quero chegar - da compressão do áudio.

Os nativos digitais me entenderão facilmente: as estantes empoeiradas de LPs dos seus pais soam como relíquias sagradas e são hoje quase que objetos intocáveis. O CD, mais próximo da realidade, simplesmente acabou, por conta da divulgação da música pela internet, e a sobra foi a música comprimida.
Mas o que é compressão? Agora me dirijo aos não-nativos digitais, ou aos que tem alguma dificuldade (como eu) de entender um monte de siglas, códigos e valores numéricos que permeiam qualquer conversa sobre este assunto.

Vou falar de forma bem simples: Compressão é colocar dentro de um espaço pequeno algo de um tamanho grande, que não caberia lá normalmente. Em certos casos, é possível dobrar este algo grande até que ele caiba no espaço pequeno, mas isso não é ainda compressão, e sim compactação, pois ele continua do mesmo tamanho, apenas está guardado num lugar menor. Uma barraca de camping, por exemplo, ocupa muito espaço montada, então desmontamos e dobramos até ela caber numa pequena sacola. Mas ela continua sendo a mesma, como ocorre nos arquivos compactados tipo ZIP ou RAR. A compressão seria quando você quer colocar algo grande num espaço pequeno, mas ele não cabe lá nem dobrado. Então você tem que cortar este algo, tirar alguma parte dele para ele caber lá. Se você corta a barraca pela metade, depois desmonta e dobra, ela caberá numa sacola ainda menor. Mas será metade da barraca.

É assim que acontece nas mídias digitais: na fotografia, por exemplo, a imagem RAW é sem compressão, mas a imagem JPEG é uma compressão. Ela corta informação que normalmente não percebemos, e para postar no facebook não fará diferença. Mas, se quiser ampliar a imagem e colocar num quadro, verá que uma imagem comprimida apresentará falhas, em alguns casos, inaceitáveis, dependendo do grau de compressão. Por este motivo é que câmeras profissionais tem a opção de registrar em RAW, e as amadoras, na maioria, não.

Assim funciona também com o áudio: o CD utiliza um arquivo original desenvolvido pela Microsoft chamado LPCM (Linear pulse code modulation), que é decodificado como WAVE (a extensão é .WAV) no Windows ou como AIFF no Mac, normalmente gravado em 44100kHz, e pode ser considerado uma referência de áudio em termos de qualidade. Existem gravações feitas com maior quantidade de informação, como os Super Audio CD, mas são casos muito específicos, que nos remetem o excêntrico endinheirado mencionado acima. O resto do mundo utiliza ou este padrão (quando ouve um CD) ou o JPEG do som: o MP3.

O MP3 é o formato mais comum de compressão de áudio, porque reduz um arquivo original em 30, 20 ou mesmo 10% de seu tamanho. Em outras palavras: um arquivo Wave representa uma quantidade de informação que pode ser comparada pelo tempo em relação à memória ocupada: 10 mega por minuto. Uma música de 10 minutos ocupará 100 megabytes em Wave. Um disco inteiro de 70 minutos, 700 mega. O mesmo arquivo pode ser comprimido em MP3 com diferentes taxas, normalmente 128, 256 e 320 kbps (kilobytes por segundo), que é o valor da quantidade de informação lida por segundo. Quanto menor for este valor, maior será a compressão. Isso quer dizer que a mesma música em MP3 320kbps, ocupará 30 mega, em 256kbps, 20 mega, e em 128kbps, 10 mega (aproximadamente 1 mega por minuto, 10% do original).

Mas qual é a mágica? Não há mágica, a barraca foi cortada. Você está ouvindo 10% da informação original. Apenas o MP3 320kbps (a menor taxa de compressão possível no MP3) consegue enganar muito bem, e, se você ouve música no carro, numa caixa de computador, conjunto de som ou num aparelho portátil, estará muito bem servido. O problema é que na internet se encontram arquivos com taxas de bits bem menores (ou compressão maior), como 160 ou 192kbps, que, neste caso, realmente apresentam perdas audíveis. Ou ainda uma taxa de bits variável (VBR), que aumenta ou diminui a taxa de compressão de acordo com as necessidades da música, mas que é uma escolha feita por uma programação, incorrendo em distorção nos momentos mais sutis. Mas por que isso não é perceptível para muita gente? Bem, eu diria que é muito perceptível, mas atribuo a causa de uma possível não percepção a 3 fatores:

1) O equipamento de reprodução é ruim, como é o caso de dispositivos móveis, alto-falantes do computador ou aparelhos portáteis baratos, então ele só irá reproduzir frequências médias, e neste caso realmente não há como perceber grandes diferenças.
2) O tipo de música ouvida não requer esta percepção. Um eufemismo para dizer que há músicas de puro entretenimento, ou mesmo música ruim, e neste caso, não fará muita diferença.
3) O grau de envolvimento com a música: se música para alguém é mera diversão de fundo da balada, não existe a preocupação com a beleza da música em si, e, neste caso, também não irá fazer grande diferença.
Estes 3 casos denunciam uma particularidade: Há pouco ou nenhum prazer em ouvir música, o grau de envolvimento é superficial, e, portanto, acaba pela máxima do indefinido: tanto faz.

Estes aspectos desdobram-se em dois sintomáticos espelhos de nossa realidade: 1) realmente há uma lacuna na sensibilidade musical de nosso planeta (já que o MP3 reina na internet) e 2) como ficam aqueles que querem ouvir música com qualidade? Sobram poucas opções.

Este últimos são normalmente os chamados melômanos, que sentem exaltada atração por música, e que buscam sempre uma alternativa para vivenciar uma audição musical da forma mais completa possível. Escrevi um post há algum tempo na sublime ocasião em que tive o privilégio de ouvir uma apresentação ao vivo da OSESP da Oitava Sinfonia de Mahler, a "Sinfonia dos Mil". Neste post, comento que o prazer de ouvir música ao vivo, principalmente uma partitura com este grau de sofisticação sonora, é realmente insubstituível. Bem, na impossibilidade de se ouvir sempre ao vivo esta obra (e esta particularmente é bem rara de ser apresentada), sobra-nos a gravação. Mas de nada adianta se ela for em MP3. O que fazer, dado que não existem mais lojas de discos e as gravadoras insistem em não disponibilizar seu enorme acervo pela internet? O que fazer, levando-se em conta que um aparelho de som de qualidade hoje custa uma fortuna? (Acham que melômanos só podem ser ricos?)
Bem, vou tentar explicar como eu resolvi este problema, na esperança de que possa servir como experiência para quem está tentando algo parecido.



1)A primeira providência é ter um aparelho de som antigo, deste tipo descrito acima (modular, imagem abaixo), com caixas de som boas e grandes. Na verdade, basta o receiver (o rádio e amplificador, à esquerda) e as caixas, e, se possível, um aparelho que reproduza CD. Hoje não se fabricam mais tocadores de CD para consumo amador, apenas players portáteis (escassos) ou leitores de DVD que também lêem CD. Serve.

O que você tiver em CD, use este equipamento para tocar. Um receiver Polyvox, Gradiente ou Kenwood (por exemplo) amplificam o som com uma qualidade incrível. A vantagem deles é que se pode adquirir um destes equipamentos usados em bom estado por preços bem módicos, ou mesmo realizar uma revisão e manutenção em equipamentos antigos. Não é caro como comprar um receiver novo, e por vezes tem até melhor qualidade. Basta ligar a saída RCA do CD player na entrada auxiliar deste receiver e teremos um som como poucos tem.


2) Caso você tenha música que não seja em CD, atente-se para copiar de um amigo ou baixar pela internet apenas arquivos sem compressão. Existem centenas de arquivos de áudio disponíveis, e para citar todos é mais fácil indicar este link de Audio File Formats. Eu costumo usar preferencialmente a extensão FLAC (Free Lossless Audio Codec). Ela é uma espécie de ZIP de áudio, pois comprime o arquivo sem cortar nada dele, ou seja, apenas dobra a barraca de uma forma eficiente, mantendo seu tamanho original. Ouvir um FLAC equivale a ouvir o WAVE integral. Outra opção interessante é o arquivo M4A da Apple, mas essa só funciona para quem usa o iTunes. Segundo fontes, o M4A do iTunes utiliza um codec Apple Lossless, e em tese também mantém o arquivo integral (mas há certa controvérsia). Mas há também o M4A que utiliza outro codec em que há perda de informação, então só dá pra confiar se for feito no seu iTunes. O M4A obtido no iTunes Store é um arquivo comprimido com perda de informação, portanto desaconselho. Evite a Amazon ou qualquer outro fornecedor que utilize arquivos em MP3, pois são barracas cortadas. Aliás, acho até incrível que a Amazon e o iTunes tenham coragem de cobrar por uma música em MP3. É o fim da civilização!
De qualquer forma, são poucos os sites que disponibilizam música em FLAC ou outro formato lossless (sem compressão), mas há alguns, que eu costumo utilizar, como o Presto Classical, o Boxset.ru e Magical Journey. Uma vez obtido o arquivo em FLAC (ou similar, APE por exemplo), você pode convertê-lo em WAVE e queimar um CD, repetindo então o procedimento no.1.

3) Caso você queira ouvir a partir do reprodutor de sua preferência ou ouvir diretamente em FLAC com algum player do computador, sugiro o VLC, que executa arquivos FLAC, é bastante versátil e é gratuito. Outra opção é converter o FLAC em WAV, e aí um player comum como o iTunes e o WMP tocam normalmente, mas a desvantagem é que em WAV os arquivos ocupam o dobro do tamanho.
E aí há uma mumunha: como transferir o áudio do computador para o receiver? Os mestres da gambiarra diriam com o peito inflado: usar na saída de fone de ouvido um cabo P2 - RCA e ligar o RCA na entrada auxiliar. Funciona, mas é tosco, e acaba morrendo na praia naquela pretensa qualidade que se queria alcançar. O melhor é comprar uma interface, que seja placa de áudio externa, que faz esta conexão com maior propriedade e, logicamente, maior qualidade.

Há muitas e de diferentes preços, do amador ao profissional. Eu utilizo uma placa simples e barata, da Behringer (modelo UCA222 USB à direita), custou-me (na época) 29 dólares. Funciona muito bem, e consigo ouvir as minhas gravações em arquivo FLAC ou M4A como se estivessem sendo tocadas diretamente de um CD.

Eu explico meu procedimento melhor aqui neste vídeo.

Espero ter sido útil. Dúvidas? Deixe seu comentário!

texto: Filipe Salles

Um comentário:

  1. Olá Fillipe, é com imenso prazer que descobri sua loja virtual, recheada de ótimos títulos lançada por selos de nata. Gostei de encontrar uma página em português sobre música erudita e sobre a música em geral. Sempre gostei de música clássica, mas só agora comecei a fazer minha coleção de CDs (rock e música clássica, principalmente) e percebi uma diferença gritante em escutar em um dc player (tenho um velho e robusto TEAC P1100, caixas básicas da Onida, mas dão pro gasto) em comparação com MP3 ou até mesmo com o vinil.
    Tenho muito interesse em saber mais sober amplificadores, caixas de som melhores e maiores ou até mesmo comprar outro player, mas no momento está financeiramente inviável. Você gosta da TEAC? Acho que é um aparelho que oferece boa performance, mas não entendo muito do assunto.
    Parabéns pelo blog, irei ler mais coisas e certamente comentarei mais.

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