sábado, 13 de fevereiro de 2016

Beethoven: tempestade e ímpeto





O nome "Beethoven", principalmente para nós ocidentais, representa um arquétipo poderoso, uma das personalidades mais conhecidas e admiradas das artes. Alguns o tem como sinônimo de música, outros ainda o consideram uma das mais vívidas personificações da figura do artista. À parte certos exageros romantizados, esses adjetivos não são sem razão: é natural que Beethoven desperte não apenas a admiração pela sua magnífica obra musical, mas também como exemplo de vida, uma vez que é bastante conhecida sua condição ímpar de compositor surdo. E, mais ainda, que nesta situação tenha alcançado fama, alguma fortuna e uma projeção sem precedentes na história da música, condição que até hoje subsiste, sendo portanto natural perguntarmo-nos: o que há por trás dessa intrigante personalidade?

Ludwig van Beethoven nasceu em Bonn, Alemanha, provavelmente a 16 de dezembro de 1770 (foi batizado no dia 17), filho de Maria Magdalena Keverich e Johann van Beethoven, de ascendência belga. Seu pai era um músico de talento bastante limitado, e ganhava a vida modestamente como cantor e professor de música, ensinando piano e violino. O casal teve ao todo 7 filhos, mas apenas 3 sobreviveram à infância; Ludwig foi o segundo, mas o primeiro a sobreviver, e portanto, foi tido como primogênito. Johann van Beethoven logo percebeu que seu filho tinha uma grande facilidade e talento para música, e na mais tenra infância já o iniciou no estudo do piano e do violino, sendo ele próprio seu professor.



Consta que o menino várias vezes chorava em frente ao piano. Cartas posteriores, de Beethoven já adulto, revelam que seu pai tinha um temperamento áspero, por vezes até violento, e exigia que o menino estudasse até o limite das forças físicas, para poder exibi-lo como criança prodígio (a esta época, a fama de Mozart como criança prodígio levou muitos pais a tentarem ganhar algum dinheiro com o talento dos filhos, ainda que forçadamente). Ao final da vida, o pai de Beethoven entregou-se à bebida e passou a receber pensão como inválido, tendo Beethoven a guarda de seus irmãos menores.

Já as lembranças de sua mãe são ternas e consoladoras: um comportamento amável, bondoso e acolhedor: quando de sua morte em 1787, retornou de sua viagem em que tinha ido estudar em Viena, provavelmente com Mozart, ao passo que a morte de seu pai, em 1792, não é nem sequer mencionada em seu diário.

Durante sua juventude, seu talento foi reconhecido e profetizado por vários compositores de renome e professores, incluindo Haydn e Mozart. Sua brilhante técnica pianística era inovadora e sua capacidade de improvisação extraordinária; foi admirado muito mais como virtuose do que como compositor. Desde os 11 anos já falavam dele nesses termos: "Tornar-se-ia seguramente um segundo Mozart, se continuar como começou", de seu professor Christian Neefe, ou ainda, quando foi estudar com Haydn em Viena, em 1792, e um amigo de infância lhe escreveu: "Trabalhe assiduamente e você receberá o espírito de Mozart das mãos de Haydn". E, o próprio Haydn, o mais festejado compositor de seu tempo, que chegou a escrever, após dar-lhe algumas aulas: "Ele ocupará no tempo devido a posição de um dos maiores compositores da Europa. Hei de orgulhar-me de chamar-me seu professor."

Em Viena, a capital da música, a efervescência cultural da era iluminista da pós-revolução francesa era um cenário propício ao desenvolvimento das artes. A aristocracia e a nobreza eram grandes patrocinadoras, cultivando principalmente as audições musicais públicas, mantendo através do mecenato compositores, músicos e até orquestras inteiras à disposição dos palácios e residências nobres. Beethoven, com seu talento e diversas cartas de recomendação, foi muito bem recebido, passando a figurar entre os mais conhecidos e requisitados pianistas de sua época. Aos poucos, suas primeiras obras foram sendo divulgadas, e em pouco tempo passou a receber encomendas de composições e chegou até a ter diversos editores brigando pela publicação de suas obras. Passou a sustentar sua família em Bonn, e assim viveu, frequentando os círculos intelectuais, políticos e artísticos mais influentes de Viena.

Desta fase, são suas primeiras obras significativas, as duas primeiras Sinfonias (op.21 e op.36), as Sonatas para piano op.13 "Patética" e op.27 "Ao Luar", e os dois primeiros Concertos para Piano (op.15 e op.19, apesar de que a numeração está invertida em relação à ordem de escrita), que ainda possuem grande influência do classicismo vienense do estilo de Haydn e Mozart.

Alguns biógrafos começam a identificar, nesta fase, por volta de 1798, um afastamento progressivo de Beethoven nestes círculos. Sua fama já era considerável, mas cada vez aparecia com menor freqüência em público, e muitos se perguntavam a razão daquele comportamento estranho, vindo daí sua fama de artista excêntrico e sonhador. Várias vezes foi visto caminhando sozinho e distraído, completamente alheio ao que acontecia ao seu redor.

Em 1801 a razão de seu isolamento vem à tona para o grande público, quando Beethoven escreveu a dois amigos próximos abrindo seu coração para o mal que o afligia: a surdez eminente.

Esta é uma das mais conhecidas páginas da biografia de Beethoven, e não sem razão. O extremo conflito pessoal que viveu nesta época foi decisivo para sua vida e sua obra.

Escreveu a seus amigos nestes termos: "Devo confessar que estou levando uma vida miserável. Por quase dois anos deixei de atender quaisquer compromissos sociais, justamente por achar impossível dizer às pessoas: estou surdo." e ainda: "Seu Beethoven está levando uma vida muito infeliz, e está de mal com a Natureza e seu Criador". Mas, não obstante, sentia que suas forças criativas estavam em plena atividade, e, ao mesmo tempo em que lamentava profundamente a saúde de sua audição, também comentava sobre seu sucesso financeiro, o quanto estava produzindo, o quanto era requisitado para compor, se apresentar e tocar. Este aparente contraste de sentimentos o impeliu a escrever também "Quero pegar o destino pelo pescoço; ele certamente não haverá de me abater completamente! Quão belo seria poder viver a vida mil vezes!"

Durante esse período, teve muitos acessos de depressão, e em 1802 chegou a escrever um testamento – o famoso Testamento de Heiligenstadt – em que põe em palavras toda a sua dor e sofrimento pela progressão da doença, ao mesmo tempo em que revela seu amor pela Arte, pela Vida e pela Natureza. Este testamento foi uma espécie de ponto de estrangulamento em sua vida: a partir deste ponto, um outro Beethoven emergiu. Percebendo que a surdez o deixaria gradativamente impossibilitado de se apresentar em público, agarrou o destino pelo pescoço, pôs de lado a festejada e promissora carreira de intérprete e voltou-se para a composição, deixando fluir o manancial da inspiração que batia à sua porta – tal qual o destino, na alusão à batida da porta de sua V Sinfonia – dando vazão à criação de uma das mais belas obras musicais da humanidade.



Os biógrafos identificam a partir deste momento uma segunda fase de sua vida e obra, e Otto Maria Carpeaux define bem este período: "Nunca um artista produziu tantas obras-primas como Beethoven em sua segunda fase". A virada é impressionante, a diferença na evolução do estilo é nítida. A tradicional forma clássica começa a expandir horizontes, o desenvolvimento da narrativa musical torna-se mais denso, o componente sensível que norteia a obra passa a ser espelho das profundezas da psiquê humana, e não mais de um ideal estético de uma beleza inalcançável; para tanto, o tamanho da orquestra aumenta, a duração das obras também, a expressão dos sentimentos passa a figurar como essência da obra.

A lista é grande: começa com a Terceira Sinfonia, op.55, dita "Heróica", obra inspirada por anseios filosóficos e políticos de Beethoven, alinhados com os ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade da Revolução Francesa, ideais estes profundamente admirados pelo compositor. Para tanto, havia pensado originalmente em dedicar a obra ao general Napoleão Bonaparte, o grande estadista e porta-voz da Liberdade, mas ao coroar-se Imperador, Beethoven considerou-o ambicioso, traidor dos princípios que outrora nortearam a maior das Revoluções na Europa, e rasgou a dedicatória, substituindo-a por "à memória de um grande homem".

Do mesmo período são a Sonata para piano op.53, chamada "Waldstein", por ter sido dedicada ao nobre homônimo, que é um verdadeiro Hino de fraternidade, e a tempestuosa Sonata op.57, muito propriamente chamada de "Appassionata", bem como os 3 magníficos Quartetos op.59, dedicados ao príncipe Rasumovsky, que fazem alusão a temas folclóricos russos, e o 4º Concerto para Piano, op.58, o mais lírico da série, de uma beleza indescritível.

Segue-se a Quarta Sinfonia, op.60, de alegria exuberante, o Concerto para Violino op.61, único do gênero que Beethoven escreveu, mas considerado o maior de todos; a sombria abertura para a tragédia de Josef Von Collin, Coriolano op.62, e suas mais famosas obras, a titânica Quinta Sinfonia, op.67, e a poética Sexta, op.68, chamada de "Pastoral". Ambas resumem o estilo e os traços mais característicos da obra de Beethoven, e especialmente a Pastoral, segundo ele próprio "expressões e sentimentos da vida no campo", refletem o grande otimismo do compositor em relação à vida e à arte. O mesmo músico que outrora declarava que estava brigado com a Natureza e o Criador, agora havia feito as pazes com a fatalidade, e escrevia em seus cadernos aforismos do tipo: "Quem sou eu perto do Universo?", "Por que escrevo? O que tenho no coração é preciso que saia: Eis porque escrevo." ou ainda "Amar, primeiro, a liberdade; mesmo que seja por um trono, não renegar, nunca, a verdade." Frases e pensamentos como este povoaram seus cadernos de conversações, muitas vezes sem um interlocutor definido, mas que são o testemunho de um homem que teve no sofrimento a chance de voltar-se para dentro de si mesmo, e com a coragem dos heróis, transformar a dor na mais refinada das artes.
Caricatura de 1808 satirizando uma execução da "demoníaca" 5a. Sinfonia

Inclui ainda neste período a belíssima Sonata para Violoncelo op.69, sua única ópera, Fidelio, op.72, o Quarteto de cordas op.74, chamado "A Harpa" por seus contundentes arpejos, o irresistível Concerto para Piano no.5 op.73, conhecido como Concerto "Imperador", sem dúvida o mais nobre e vigoroso concerto já escrito; a grandiosa abertura Egmont op.84, a Sétima Sinfonia, op.92, definida por Wagner como "a apoteose da dança" e exaltada como a maior sinfonia do mestre; e tantas outra obras cujos adjetivos falhariam em traduzir.

Essa imensa obra ainda estava longe de terminar, Beethoven contava 40 anos e estava na plenitude de seu poder criativo, mas sua revolução ultrapassou aspectos estéticos: uma nova forma de produzir música estava no ar. Ao contrário do padrão clássico, em que os compositores eram empregados das cortes e igrejas, e tinham por mecenas príncipes e nobres, foi Beethoven o primeiro compositor a inverter a ordem das coisas, a ter autonomia total na criação artística. Era ele quem ditava as regras aos nobres, ele dizia o que os editores deveriam publicar, ele escolhia o que dedicar, a quem e quando. E, pelo carisma de sua obra, não houve protestos. Beethoven já era considerado, em atividade, o maior compositor vivo. Apresentar uma obra de Beethoven era garantia de sucesso dos empresários e editores de música. Beethoven tirou a música das salas dos palácios nobres e a colocou nos teatros, aclamado como porta-voz de uma nova classe emergente, a burguesia, que saía da tirania aristocrática e ansiava por uma arte que representasse seus anseios filosóficos e estéticos. Eis Beethoven, o grande individualista, abrindo as portas da era do autor na música, o Romantismo.

A forma, ainda clássica. O espírito, romântico. E neste estado, entra Beethoven naquilo que os seus biógrafos identificam como a terceira fase, por volta de 1812, e que se caracteriza por uma mudança ainda mais radical na sua obra. Seu estilo passou a ser cada vez mais intimista, abrindo novas fronteiras nos campos da forma, harmonia e desenvolvimento melódico. Esta mudança é normalmente atribuída a dois fatores: o primeiro seria uma relação conturbada com seu irmão, que entregou-se à bebida, e, incapaz de criar um filho, Beethoven requisitou sua tutela, porém dando-lhe mais desgostos que alegrias. O mestre nunca se casou e provavelmente tenha extravasado anseios paternos em seu sobrinho, que não foram correspondidos, deixando Beethoven muito aborrecido e mais afastado mundo. Outro fator foi a surdez, que nesta fase já era total. Enquanto em sua segunda fase ainda era possível alguma resposta auditiva, neste momento era totalmente incapaz de ouvir qualquer som. O resultado foi um Beethoven quase isolado deste mundo, vivendo dentro de seus próprios pensamentos musicais, muitas vezes vagando pelas ruas sem destino. Chegou a ser detido pela polícia como vagabundo. Em contrapartida, sua obra ganha um fôlego inesperado. A Sonata para Piano op.106, chamada Hammerklavier, é uma verdadeira Sinfonia escrita para piano, de dimensões inusitadas e profundidade emocional desconcertante, é um novo estilo, um outro compositor. Muitas das obras dessa fase são estranhas ao público acostumado com o Beethoven titânico da Quinta e Sétima Sinfonias, mas revelam anseios filosóficos muito mais profundos. Desta fase são duas obras muito importantes, a Missa Solemnis, op.123 e a Nona Sinfonia, op.125, que por si mesma já seria suficiente para manter o nome Beethoven na eternidade das grandes obras de arte da humanidade. Há uma quantidade enorme de estudos, livros, teses e publicações das mais diversas, apenas sobre esta obra, tamanho o fascínio que ela exerce. Não é sem razão: Beethoven há muito queria escrever uma obra que abarcasse ideais estéticos musicais e filosóficos, e o fez nesta singular sinfonia, a primeira na história da música a contar com solistas vocais e um coro, cantando o célebre poema de Schiller, a Ode à Alegria, que exalta as virtudes da humanidade frente à beleza da Criação. O tema que Beethoven escolheu para musicar o poema estava em seu caderno de esboços há muito tempo; esperou cautelosamente uma oportunidade que valesse a pena, tal a consideração que Beethoven tinha por esse tema, que sabia ser a tradução musical destes anseios. O resultado, embora criticado por muitos como desigual, foi o maior sucesso de Beethoven até hoje, e é a sinfonia que mais se executa no mundo em ocasiões solenes e nobres, e com razão tem sido usada para os mais diversos fins que tenham a intenção de compartilhar o amor e a fraternidade entre os povos.

Esboço para o tema da Ode à Alegria da Nona Sinfonia

Beethoven estava completamente surdo quando a escreveu, e foi convidado a reger sua estréia em 1824. Consta que ele, ao término do segundo movimento, foi ovacionado entusiasticamente pela platéia, mas não percebeu. Uma das cantoras pegou em seu braço e o virou para que pudesse ver a platéia, e somente aí agradeceu. A Nona Sinfonia é a obra mais importante, e, merecidamente, a mais admirada de Beethoven.

A partir daí, o mestre voltou-se quase que exclusivamente para a composição de quartetos de cordas. Tinha muitos projetos em mente, mas por conta da completa surdez, seus pensamentos musicais revelavam-se tão abstratos, tão imateriais, que acabava por concebê-los na forma do quarteto, o que deu a este gênero uma aura misteriosa. Os "últimos quartetos" de Beethoven são obras difíceis, que requerem certo desprendimento das formas tradicionais, uma nova forma de ouvir.

Já doente e cansado, aos 57 anos, Beethoven falece em 26 de março de 1827, sendo seu enterro um grande acontecimento em Viena, que reuniu aproximadamente 10.000 pessoas (alguns falam de 20.000), para homenagear o "Napoleão" da Música, aquele que, ao ser afrontado por um nobre que lhe disse ser proprietário de terras, respondeu-lhe "pois eu sou proprietário de um cérebro".

Funeral de Beethoven em Viena

Ao contrário de Mozart ou Bach, escrever música para Beethoven nunca foi fácil. Seus cadernos de esboços estão repletos de correções e alterações, mesmo nas partituras autógrafas, o que atesta um trabalho meticuloso por trás de uma inspiração abundante. Beethoven é, por conta disso, a personificação do aforismo que reza "10% de inspiração e 90% de transpiração" na produção da obra artística, e neste sentido também é um grande exemplo de amor à vida e à arte. Resumidamente, nas palavras de Carpeaux, "A arte de Beethoven é o maior documento humano em música. Se desaparecesse do nosso horizonte espiritual, a humanidade teria deixado de ser humana."

Texto: Filipe Salles

Nenhum comentário:

Postar um comentário