sábado, 15 de setembro de 2012

A apoteose da invenção temática

O som possui diversos elementos que são reunidos para formar aquilo a que chamamos música. Uma organização de sons, tal como a que fazemos para juntar letras e formar palavras, cria um sentido, um discurso, e este discurso é o que nos fascina tanto na música.

O que são os mais diversos estilos de música, senão diferentes formas de organização sonora? E assim cria-se, a partir de sons dispersos, sentidos próprios, com atmosferas e climas os mais variados. Na mesma razão que a poesia, a literatura, ou qualquer forma de escrita, a música também é uma linguagem, que, por conta de seu aspecto abstrato, comunica diretamente aos sentidos, por vezes burlando o filtro racional do cérebro.

Dos muitos elementos que a música possui, um deles é o chamado "Tema": o sujeito da música, um personagem sonoro, o herói da narrativa sonora. Assim como os grandes heróis da literatura ou do cinema, o discurso musical também sofre as variações dinâmicas, tonais e dos timbres para chegar ao seu objetivo: o acorde final (quem não se lembra do tema principal da V Sinfonia de Beethoven ou da Pequena Serenata Noturna de Mozart?). E a invenção destes temas é uma grande virtude musical. Grandes obras só se realizam com grandes temas, e até mesmo obras menores apóiam seu carisma em temas interessantes. Sem eles, a obra perde sua personalidade, e seu discurso fica solto num conglomerado de sons estéreis, como que buscando um fator comum que os reúna. A música erudita moderna opera justamente nesta premissa, ignorando a hierarquia de um discurso sonoro, o que é interessante como experiência, mas desprovido de prazer melômano.

Há, entretanto, que se fazer uma distinção entre tema e melodia. Nem todo tema é melódico, e nem toda melodia é um tema. Muitos compositores foram pródigos nos dois quesitos, como Mozart, Beethoven, Tchaikovsky e Chopin. Mas há também os que tinham maior facilidade em um ou outro, fazendo sempre o tema predominar sobre a melodia ou vice-versa. Schubert e Haydn, por exemplo, são compositores mais melódicos que temáticos, ao passo que Bach e Liszt são mais temáticos que melódicos. Cita-se ainda o prolífico Dvórak, de quem Brahms dizia que seus temas dariam para alimentar compositores durante anos!

Mas, de todos os compositores que eu conheço, nenhum foi tão pródigo na invenção temática como o italiano Antonio Vivaldi (1678-1741), também conhecido como Padre Vermelho (não era comunista, era ruivo).
Responsável por escrever mais de 400 concertos, que apesar de curtos, possuem o germe do desenvolvimento melódico que mais tarde será modelo para Haydn e Mozart, foi durante certo tempo desdenhado, como um compositor muito "fácil" e redundante (um crítico chegou a dizer ele escreveu o mesmo concerto 400 vezes). Seu desenvolvimento temático tem como principal atrativo progressões harmônicas bastante simples, que muitos viam como uma limitação. Ademais, é um compositor marcado, injustamente, pelo sucesso (merecido) das "Quatro Estações", como se só tivesse escrito isso.

Mas quando eu era adolescente, sempre que ia ouvir um novo concerto de Vivaldi, ficava empolgado, pensando em como seria o tema com que ele iniciaria o movimento. Era sempre uma surpresa! Mesmo as progressões, hoje são vistas como uma virtude: não basta apenas repetir uma célula melódica progressivamente, é preciso saber como e onde usá-la, e isto ele bem sabia. Seus concertos acabam por ser um imenso catálogo de temas cativantes, em que faz desfilar brevemente diversos personagens, tão característicos quantos os memoráveis papéis de Shakespeare, e acho que nisso reside, fundamentalmente, todo o seu carisma. E daí, resulta outra virtude: a simplicidade com que trata estes temas, claros, objetivos e belos.

E ainda hoje, essa mesma empolgação me motiva a fuçar em sua imensa produção: a quantidade de temas que este homem inventou é assombrosa: uma verdadeira apoteose da invenção temática.

Fica a dica: Vivaldi é mais que as Quatro Estações!





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