domingo, 2 de setembro de 2012

A primeira vez: uma escuta que marca.

Apesar da estonteante tecnologia digital possibilitar a audição instantânea e perfeita de uma obra musical, outro dia me vi buscando antigas e gastas fitas K-7 encaixotadas, ligando meu antigo (mas muito bom) double cassete deck para satisfazer anseios melômanos.
Explico: procurava ouvir uma gravação da Nona Sinfonia de Beethoven com o mestre Paul Kletzki regendo a Filarmônica da Tchecoslováquia, cujo registro eu só tinha num antigo LP que comprei na Sears (alguém lembra?), quando contava 12 ou 13 anos. Ainda tive a pachorra de, antes de me desfazer destes LPs para dar lugar aos CDs (coisa que hoje para mim seria motivo de auto-flagelação), gravar a obra em fita K-7. E foi o que me salvou.
 
(Atualmente consegui a versão em CD. Download aqui.)
Mas o detalhe curioso é que eu tenho outras gravações desta sinfonia, com Karajan (DG, 1963 & 1984), Masur (PHILIPS), Harnoncourt (Teldec), Gardiner (Archiv) e Furtwangler (a gravação do Festival de Lucerna de 1956), todas em CD, o que por si só já seriam suficientes para satisfazer minhas necessidades beethovianas. Me perguntei então, por quê precisava ouvir aquela específica versão, gastando tempo para ressuscitar um suporte obsoleto e de qualidade duvidosa?
A vida humana pode ser resumida numa sequencia de eventos a que chamamos experiências, que, de forma indelével, nos marcam com o aprendizado das resultantes de cada processo vivido. Tais registros vão se acumulando, e alguns se tornam recorrentes: acabam como rotina.
Mas um fenômeno ocorre quando passamos por uma experiência do qual não temos registro: ela fica marcada como uma referência universal, que, se não soubermos considerar a relatividade circunstancial da experiência, tomá-la-emos como uma verdade absoluta. É a síndrome de primeira vez.
A primeira vez que fazemos ou tomamos conhecimento de algo é sempre marcante, quando a experiência tem um interesse consciente. Neste caso, foi exatamente por isso que precisava ouvir aquele Beethoven e não outro: era o Beethoven da primeira vez.

E Beethoven tem boa culpa neste cartório: dos vários discos que ouvia ainda criança, alguns deles eram clássicos, mas essa divisão não era exatamente clara em minha cabeça: eram apenas músicas que eu gostava, tanto quanto qualquer outra. Até que um dia, e um dia específico, quando eu tinha 10 anos, meu pai pôs o disco do Concerto Imperador (à direita), gravação de Weissenberg com Karajan pela EMI de 1977, e o mundo nunca mais foi o mesmo.
A beleza daquela música penetrou em mim como um sopro divino: indefensável, irresistível. Continuei o resto do dia lembrando daquela música, sonhei com a música durante a noite, e no dia seguinte ouvi mais algumas vezes. A partir desse momento, entendi o que era essa música clássica: era o que eu gostava. E, claro, nunca outra gravação me satisfez.

Com o tempo meu universo musical foi crescendo, se diversificando. Entendi que existiam estilos, caráteres diferentes. Compositores barrocos, clássicos, românticos e modernos. Mas essas gravações permaneceram. Devorava LPs e K7s, programas de rádio e concertos ao vivo. 


Percebi que não era fato isolado: no fim dos anos 80, quando passamos a trocar LPs por CDs, lembrei-me da minha convicta recusa em adquirir uma gravação da Sagração da Primavera que não fosse a de Colin Davis com o Concertgebouw de Amsterdan (Philips, 1976). Tive que esperar 2 anos até achar esta gravação, pois nenhuma outra me satisfazia. Era a Sagração da primeira vez. De outra feita, relembrei da frustração em comprar uma ótima versão do Concerto para Clarineta de Mozart (com Karl Böhm), mas imediatamente pensar: "puxa, não soa como aquela versão que eu gosto!" - a de

Karajan, com Karl Leister (EMI, 1971, Download aqui) - o Mozart da primeira vez. 

E não se trata apenas da interpretação, é a sonoridade, os ruídos de palco, a pratada bem dada, o trombone ao fundo, nuances que marcam e que outra gravação não satisfaz.
Por essa razão, tenho que a melhor gravação de La Mer é a que Karajan fez em 1977 pela EMI (Download aqui), a do Segundo Concerto de Brahms é a de Pollini com Abbado (DG, 1977, Download aqui), assim como o melhor Concerto para piano no.3 de Prokofiev é o de Byron Janis com Kirill Kondrashin em Moscou (Philips, 1962, Download Aqui).
Na tentativa de uma interpretação mais profunda deste fenômeno, percebi também que isso não se aplicava a todos os casos (apesar de ser verificado na maioria esmagadora deles): situações em que há mais de uma versão preferida (5a. de Mahler ou a Patética de Tchaikovsky, por exemplo), ou ainda, preferir versões que conheci posteriormente.

Por que então algumas gravações marcaram tanto?

O único critério comum em todas elas, é que eram ou gravações que meu pai tinha, ou que foram as primeiras que adquiri, e que ouvia ainda na infância e adolescência. Foram estas as gravações que representaram minha entrada no universo da música, que ouvi até a exaustão. Elas solidificaram minhas referências, e talvez por isso, tenham guardado a emoção do frescor da descoberta. Mas talvez isso não seja suficiente, pois hoje, tendo ouvido muitas outras versões, e desenvolvido muito mais o sentido crítico das nuances de interpretação, ainda assim elas continuam minhas preferidas. Talvez esta razão esteja no fato de que, como as coisas não acontecem ao acaso, estas

eram as versões que eu precisava ouvir para sentir o que hoje eu sinto pela música.
Abraços!

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