terça-feira, 7 de julho de 2020

A Era de Ouro da Trilha Sonora

Desde que escrevi, há mais de 15 anos, o primeiro artigo sobre trilha sonora (e que depois veio a constituir um dos capítulos da minha dissertação de mestrado e meu livro sobre o assunto), sempre procurei acompanhar as tendências e rumos que o cinema hollywoodiano (o único que nos chega fora dos grandes centros, infelizmente) tem tomado nesta intrincada relação som-imagem.

Um colega costumava dizer que um filme é "100% imagem e 100% som", o que, antes de ser uma contradição matemática, é uma verdade cinematográfica. Mesmo filmes que não possuem trilha sonora como Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon), de Sidney Lumet, são contundentes no quesito som, e a ausência de música acaba por enfatizar aspectos visuais; é um fator dramático preponderante.

Muito se tem discutido a respeito da necessidade e da própria razão de existência da música no cinema, mas uma coisa é certa: assistir Star Wars sem música é uma das experiências mais frustrantes da vida de um fã. Acredito que, enquanto na cinematografia dramática a trilha sonora é uma opção, na cinematografia épica é uma obrigação.

Mas, justamente lembrando destes gloriosos tempos das contundentes trilhas dos anos 70-80, hoje assistindo aos épicos modernos, me pergunto: para onde foram as aquelas boas trilhas sonoras?

Antes de mais nada: o que significa, neste contexto, uma 'boa trilha sonora'? Bem, levando-se em conta a relatividade da questão, estabeleço os parâmetros que me guiam: eles remontam à própria noção de música épica, da qual podemos considerar Ludwig van Beethoven seu primeiro arauto. Na passagem da tradição clássica para o romantismo, a música deixa de se bastar em sua própria forma e parte para explorar descrições de estados de espírito de contextos externos à própria música. Isso caracteriza de maneira geral a música de Beethoven, como pertencente a um universo emotivo mais referencial, imprimindo caráter próprio à cada elemento discursivo em sua arte: como se musicasse sentimentos. Isso se torna evidente na Sonata ao Luar ou na Sinfonia Pastoral (inclusive revestida de imagens pelo desenho ontológico de Disney), e também na Nona Sinfonia, através de uma narrativa epopéica que parte da angústia sombria do ré menor do 1o. movimento para a expressão mais universal de júbilo em música, o ré maior do tema da Ode à Alegria do 4o. movimento. Isso sem falar da profundidade do Adagio e do contagiante Scherzo, que são etapas que nos preparam para o finale. Essa ideia de "preparar o final" já existia como função harmônica, no sentido de preparar um acorde para resolução, mas não um conceito usado como recurso da estrutura narrativa. E foi isso que Beethoven fez. Daí em diante, todo o mundo se tornou romântico, até mesmo, quem diria, Brahms (vide os finais, grandiosos, de sua Primeira, Segunda, e Quarta Sinfonias). 

Mas talvez o compositor que tenha levado essa narrativa épica à sua mais alta sofisticação romântica foi Richard Wagner. O Drama Musical é a cinematografia do séc.XIX, com sua narrativa musical e dramática ininterrupta, que nos leva a um final sempre catártico. Poucas vezes a história da música arrebatou tanta emoção como na última cena do Crepúsculo dos Deuses ou na morte de amor de Tristão e Isolda. São obras que preparam a narrativa para a conclusão épica, utilizando temas que representam personalidades ou estados específicos da história narrada. Uma técnica desenvolvida primeiramente com Hector Berlioz através da ideia-fixa (caso da Sinfonia Fantástica, talvez a obra mais representativa do romantismo sinfônico), e depois aproveitada por Wagner como leitmotif, ou motivo condutor. Até hoje as novelas utilizam essa técnica, associando música a personagens.
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A questão é que quando associamos um tema musical específico, bem delineado, bem definido, a um estado de espírito, acrescentamos um signo-sinal, uma marca registrada, uma identificação com a história e o caráter de sua narrativa. 

Assim, quando o cinema se tornou sonoro, os compositores vieram justamente dessa tradição sinfônica, cujos ápices podem ser resumidos nas figuras de Richard Strauss e Gustav Mahler, em função de suas obras grandiloquentes e épicas, ao ponto de Debussy ter se referido ao Heldenleben de Strauss como 'um livro de imagens, cinematografia'. 

Pertinente, portanto, entender porque Strauss (o Richard, neste caso) foi usado na apresentação do clássico da ficção científica 2001: uma odisséia no espaço (1968) de Kubrick (o Johann também deu sua contribuição): ilustrou com maestria o ideal épico filosófico que o filme evoca, criando identidade ímpar. Depois desse filme, o Zarathustra nunca mais foi o mesmo: todas as artes das capas de gravações dessa obra fazem referência ao espaço sideral, coisa que não estava no horizonte nietzscheano que inspirou Strauss. 


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Mas não só o Zarathustra, não só 2001: a música sinfônica épica pós-wagneriana (inclusive) influenciou praticamente todas as trilhas sonoras de ficção científica modernas, vide as harmonias e ritmos usados na merecidamente célebre suíte de Gustav Holst, Os Planetas. Ou ainda nas digressões sinfônicas de Mahler, verdadeiras epopéias orquestrais (particularmente sua Segunda Sinfonia, que segue o modelo de narrativa beethoviano), e também na Morte e transfiguração de Strauss. 

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A eloquencia no discurso musical, a mesma que torna a música grandiosa, empresta este caráter a uma imagem a ele associada. Quanto mais eloquente o tema, mais essa simbiose se torna significativa, e a resultante emotiva, perene. E é nesse quesito que as trilhas modernas falham. Não são eloquentes e criam identidade muito frágil com o espírito da narrativa. São apenas panos de fundo que ajudam a climatizar a imagem, mas quase não interferem nela. Sustentam estados de maneira quase imperceptível, não atuam de forma concomitante, mas subordinada. Isso é ruim? Não necessariamente, sempre depende de intenções poéticas do conjunto, mas se a história da trilha sonora nos ensinou alguma coisa é: quão mais forte é a emoção com o reforço de dois estímulos sensíveis, música e imagem!

Por esse motivo, do início do cinema sonoro até este período, a música para cinema foi feita por compositores clássicos, literalmente. Não apenas por sua formação, mas também pelo próprio espírito estético envolvido. A necessidade de uma identificação simbiótica som-imagem como reforço de um potencial emotivo: a fábrica de sonhos. Dois grandes exemplos: Erich Korngold e Miklos Rozsa.

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O austríaco Korngold foi um gênio precoce, já chegando aos produtores de Hollywood com credenciais altamente referendadas, incluindo recomendações dos próprios Strauss e Mahler. Imigrando como refugiado de guerra, encontrou no novo mundo uma cultura basicamente visual, permeada pela indústria foto e cinematográfica em franca ascensão e, no quesito musical, dividida entre o culto ao sinfonismo clássico e romântico, ou a vanguarda da influência do jazz e da canção popular. Resumo: pouco espaço para qualquer alusão aos seus ideais pós românticos, razão pela qual seu destino natural foi a música para cinema. Korngold fez verdadeiros poemas sinfônicos de suas trilhas, como atestam os temas cativantes de seus melhores trabalhos, não obstante sua produção também abranger óperas, música de câmara e sinfônica.
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Rozsa, de origem magiar e formado pelo Conservatório de Leipzig, não era apenas um compositor proeminente, mas também um musicólogo largamente interessado em arqueologia musical, pesquisando música histórica e especialista na reconstituição das sonoridades da antiguidade. Mas seu principal atributo, em termos de visão estética na composição musical, era seu senso de grandeza: o épico na música, que levou, por exemplo, à glória da trilha de Ben-Hur (1959) de Wyler. Uma das mais contundentes trilhas sonoras já escritas, modelo para gerações posteriores.

Além deles, compositores consagrados no cenário erudito também receberam, ocasionalmente, encomendas para trilhas sonoras, como Prokofiev, Shostakovich, Vaughan Williams, Milhaud e Villa-Lobos. A profissão de músico incorporou mais uma especialidade: começa a geração dos compositores específicos para cinema. Assim, temos que a trilhas dos anos 40-50 foram realmente marcadas pelo sinfonismo pós-romântico, a notar pelas belas construções de Dmitri Tiomkin, Max Steiner e Alfred Newmann. Todos em certa medida korngoldianos, mas que em certos momentos chegavam a sobressair em relação à própria narrativa dramática: mais música que história. 

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As trilhas dos 60 e 70's seguiram exatamente essa razão, mas buscando seu perfeito equilíbrio: simbiose entre música e imagem, tirando uma resultante emotiva ímpar. Até mesmo a inclusão da música popular como tema de filmes não apagou a necessidade de trilhas orquestrais, mantendo as atmosferas sensíveis mais proeminentes à cargo da música sinfônica. Todos os gêneros compartilharam dessa premissa, do drama à comédia: quem não se lembra da trágica Love Story e sua trilha concertante assinada por Francis Lai, a fábula felliniana Amacord, do eterno Nino Rota, ou a irresistível Pantera-Cor-de-rosa de Henry Mancini? Mas os anos 60-70 também continuaram a era de ouro dos épicos e suas trilhas: Doutor Jivago e Lawrence da Arábia, do incrível Maurice Jarre, pai de Jean-Michel, mestre dos sintetizadores dos anos 80. 
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Isso sem falar nos westerns e nos suspenses: o que seria de Hitchcock sem Bernard Herrmann, o que seria de Sergio Leone sem Enio Morricone?

A partir dos 70-80, o grande gênero que sustentará as trilhas sinfônicas mais empolgantes será a ficção científica: de Blade RunnerStar Trek a Star Wars, ninguém pode dizer que as trilhas de John Williams, Jerry Goldsmith, Vangelis ou James Horner não tenham ajudado a transformar cada um desses filmes em verdadeiros cults. A trilha de Horner para Star Trek II (1982) é digna de menção, pela originalidade e eloquência. Poucas vezes no cinema o clima foi tão bem construído pela música e se harmonizou tanto com o espírito da narrativa.

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Mesmo quando as músicas apresentam claras citações temáticas e harmônicas com os grandes mestres do passado, ainda assim tal aspecto não lhes tirava o mérito, e muito menos a grandiloqüência. Lembro-me perfeitamente do impacto que a partitura de E.T. - O Extraterrestre provocou na sua platéia: as pessoas saiam do cinema cantarolando o tema, além, é claro, da cara vermelha e inchada de tanto chorar. Sem dúvida, a música deste filmes é uma verdadeira marca em nossas vidas, uma cereja do bolo. Essa era dourada conseguiu adentrar os anos 90 de forma bem menos incisiva; timidamente, diria. A fórmula mostrava sinais de desgaste, as músicas não conseguiam mais acompanhar a eloquência das imagens; a saturação parecia inevitável.

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Com efeito, a partir de 2000, com raríssimas exceções, nunca mais consegui ir ao cinema e ter a mesma sensação - aquela  em que música é tão sensível que vibramos ou choramos junto com os personagens (como no Cinema Paradiso, com trilha magistral de Enio Morricone). Mas de forma geral, não precisamos remontar aos mestres da era de ouro para perceber certa queda na relação som/imagem: basta ver a filmografia contemporânea e constatar que a trilha sonora de um Avatar, de um Titanic (sua partitura orquestral, não sua canção-tema), e mesmo de TroiaBatman ou até o Lord of the Rings são partituras que não estão na mesma razão de qualidade música-imagem que estavam os épicos dos 50 até os 80. Aliás, a inspiração para música de cinema está tão minguada que Troia se valeu nada menos que um tema de Shostakovich como leitmotiv. A pergunta que me faço: É uma tendência de hollywood optar por trilhas sonoras que fiquem aquém da qualidade da imagem ou é uma real crise de criatividade na música mundial?

Fica a reflexão.

Abraços



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